12.10.09

uma página já basta


memórias da minha primeira visita a ilha de Paquetá, RJ, provavelmente aos 4 ou 5 anos de idade.


E um dia o pensamento resolveu visitar a ilha. Aquela ilha que já está com as páginas amareladas e umas orelhas rasgadas de tanto esforço pelo resgate da lembrança. E não adianta. Só aquela página permanece escrita. As outras, igualmente envelhecidas, não demonstram nenhum indício de tinta ou de carvão ou de qualquer outro sinal de registro escrito. O jeito foi revisitar a mesma e antiga página.

Número 14.

O interessante é que o pensamento já chega na ilha lá pela metade do dia. Desembarca do bote com as pernas cansadas, como se tivesse caminhado o dia todo, tirado uma porção de retratos, parado e apreciado o novo e agora, os olhos miram as lambujas, pois os andadores já gritam, latejando.

Foi aí que o pensamento encontrou a menina vestida de listras vermelhas e cachos negros domados por um laço de fita. A menina não se dá conta de que o pensamento a encontrou.

Anda com feição de desconforto. Parece que o cheiro das calçadas de pedra marítima não lhe agradam; não pelo fato de serem do mar, mas porque parece que algum turista desavisado esqueceu que um dia, um outro indivíduo de alma infinitamente mais nobre presenteou a humanidade com seu maior invento: o vaso sanitário.
Pois bem. O sujeito de espírito vergonhoso aparentemente não teve tempo de encontrar o caminho devido e fez das calçadas da ilha seu vaso sanitário particular. Aliás, provavelmente este não tenha sido o único. Ultimamente, a proliferação dessa espécie de fulanos tem sido assustadora.E naqueles dias, não era diferente.Daí a razão da testa atrofiada da menina das listras vermelhas, cujos olhos negros pronunciam todas as palavras de baixo calão que ela ainda nem aprendeu, mas que certamente já perambulam por suas veias de brasileira.

E o pensamento deu sorrisos largos ao reencontrar essa menina emburrada.
Foi tão grande seu deslumbramento que perdeu de vista os cachos saltitantes por entre os outros milhares de transeuntes apressados e ranzinzas. A multidão levou a inocente.

Sem saber exatamente por onde seguir seu trajeto, o pensamento ouviu o trote dos cavalos que moviam as charretes turísticas, ao ruidosamente cruzarem as alamedas da ilha.

A página vai acabando.

O pensamento, numa última tentativa, olha para essa charrete que diante dele passa. E vê os olhos da menina pela janela de plástico. Vê as listras vermelhas e o laço de fita envolvendo a cabeleira escura. E a menina, sem saber, o fitou.

Fecha o livro que tantas vezes folheara, entra no bote e volta para o continente.

Mais uma vez, esta página apenas bastou ao pensamento.

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