6.8.09

triste fim de rico


Hoje, ao papear com uma amiga, relembrei um antigo cabelereiro. A lembrança a princípio foi ruim. Mas com o desenrolar da conversa, acabei por sentir pena, uma tristezinha pontiaguda, e logo mais apontarei as razões.

Rico foi, algum dia, o responsável pela aparência da célebre Elis Regina. Seus dias áureos foram preenchidos com a exuberância, o vigor e o caráter temperamental da estrela. Tamanho foi o impacto da Elis na vida do Rico, que ele não conseguiu desgarrar-se dessas memórias mesmo tanto tempo depois da morte dela.


Conheci essa figura há uns 3 anos. Confesso que minhas impressões não foram nada positivas em nosso primeiro encontro. Pelo contrário. Lembro-me, sem esforço de memória, que logo ao entrar no salão, percebi que ele tentava lavar o chão, cometendo apenas o pecado de não varrer primeiro os cabelos cortados. A água com as madeixas formava uma pasta cabeluda e nojenta. Já torci o nariz. Interessante que essa imagem em nada combinava com a propaganda que me haviam feito do estabelecimento. Continuei a observar: a tonalidade geral era acinzentada, talvez por ser uma boa mistura da fumaça dos mil cigarros que ele fumava com o ocre das paredes envelhecidas. As almofadas encardidas e de uma fazenda de estampa escura completavam o aspecto lúgubre. Mas no centro, pendurada na maior parede, tinha uma grande foto dela, a sua musa, talvez a imagem que ainda o mantesse vivo: Elis.


Eu, por um momento, me arrependi de ter entrado no recinto e estava reavaliando se ainda deveria estar ali, parada, com uma expressão de espanto. Mas esse meu pensamento foi lento, muito lento. Rico me surpreendeu com um cumprimento, sem que eu nem notasse que ele se aproximara.


A sua imagem combinava com o resto do cenário. Nada mais coerente. Não era alto, e certamente estava subnutrido. As olheira profundas e os dentes escurecidos faziam contraste com o cabelo comprido e descolorido. Sinceramente, amedrontador. Mas ele foi gentil. É claro que gentileza não é o suficiente nessas horas, mas eu estava tão atônita e sem acreditar que estava imersa naquela situação, que andei pela sala em movimentos robóticos; e obedecendo a indicação do Rico, sentei-me na cadeira preta.


Quanto arrependimento. O leitor deve estar dizendo um "bem feito" pra mim. Depois e toda esta descrição, somente alguém com alguns parafusos a menos sentaria naquela cadeira e deixaria as próprias madeixas a mercê de um sujeito e num lugar como esse. Eu queria uma escova. Uma simples escova. Mas ao final dos 45 minutos mais longos e literalmente dolorosos da minha vida, eu saí pronta para ser confundida com um leão na rua. E Rico não me cobrou barato, o atrevido!!


Saí do salão (se é que pode-se chamar aquilo de salão) bufando. Não sabia medir se sentia maior raiva daquele que me indicou o lugar (melhor dizendo, daqueles. Impressionantemente, mais de uma pessoa me indicou a espelunca. Diziam que era feinho, mas que os resultados valiam a pena) ou de mim mesma, que após todos os mais claros sinais, prossegui.


Depois dessa experiência traumática, fiquei dias tentando evitar a lembrança deste dia. Somente depois de semanas, é que eu pude separar um pouco o Rico - torturador do Rico - ser humano. Ele só falava nela. Seus olhos brilhavam ao lembrar-se de sua beleza, de sua voz e um sorriso se esboçava toda vez que mencionava como Elis era cheia de vontades, temperamental.


Alguns meses depois, soube que Rico morreu. Assassinado. E então eu senti uma tristeza imensa. Primeiro, não entendi essa minha tristeza, se eu o havia odiado tanto. Mas depois entendi. Morreu ali alguém sem esperança, sem estímulo, sem horizontes. Morreu no anonimato, sozinho.


E eu passei pela vida desse homem, percebi toda a tragédia e não fiz nada a respeito. Saí com raiva e prometi a mim mesma que jamais voltaria a vê-lo. E de fato, não verei. O tempo já passou e lembrar dessa experiência em nada adianta. Mas me fez refletir sobre meus impulsos, minhas reações. Talvez eu pudesse ter falado mais, talvez eu pudesse ignorar o fato de que ele podia ser tudo, menos cabelereiro. Talvez eu pudesse ter alegrado aquele dia, mesmo que a tristeza voltasse a noite.


Talvez...

3 comentários:

  1. muito bem escrito!! leitura gostosa...

    Carol C.

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  2. Poderia pensar em palavras bonitas, versos marcantes, mas não poderia expressar, estas verdades, de maneira tão sábia e tão gostosa de se ler, como a cima foi escrito.
    Não haveria como achar palavras para acrescentar a nada do que foi dito, os sentimentos vividos e sentidos na pele.
    Tudo que posso dizer é bem simples...
    ...uma boa escrita pode nos fazer refletir e mudar vidas,e essa com certeza cumpriu o seu papel.

    julia

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  3. sensivel...marcante...parabéns

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