eu não aguento tanta fofura!
o magistério me transformou :)
Sim, eu abandonara o reino dos fantoches de papelão pintado para, conduzido por Clarissa, entrar pela porta da pensão de dona Zina no território das criaturas de carne e osso. Estava longe, porém, de achar que a mudança tivesse resolvido definitivamente o problema.
Relendo a primeira novela, alguns meses após a sua publicação, entrei em séria contenda comigo mesmo. A vida não era uma sucessão de momentos de beleza poética como a história daquela adolescente parecia insinuar. Além do mais - disse eu para mim mesmo - sinto dentro de você um poeta e um satirista em conflito permanente. Clarissa foi a oportunidade do poeta. Por que não dar no próximo livro carta branca ao satirista? As zonas sombrias da vida merecem também a atenção do pintor. Mude de técnica: use agora óleo em vez de aquarela. Empregue um pouco de vinagre para quebrar a adocicada fragrância de água-de-colônia que pervaga a atmosfera de Clarissa.
Naquele ano de 1934, minha luta econômica continuava encarniçada. Era eu obrigado a trabalhar cerca de doze horas por dia para fazer face às crescentes despesas mensais. Não deixava de ser-me penoso passar quase toda a semana a recalcar o desejo de escrever minhas próprias histórias para traduzir as alheias ou rabiscar da alma profana legendas para as gravuras da Revista do Globo.
Em 1933 iniciara eu a tradução do Point counterpoint, cuja leitura exercera grande fascínio sobre o meu espírito - e esse trabalho me ocupou a melhor parte de um ano. Agradava-me na obra de Aldous Huxley a novidade das vidas e intrigas cruzadas, a ausência de personagens centrais e a tentativa de dar ao romance uma estrutura musical.
É pois explicável que a influência de Contraponto se tenha feito sentir de maneira considerável na técnica de Caminhos Cruzados. Creio, entretanto, que essa influência não foi tão profunda como deram a entender os críticos brasileiros que se ocuparam com o meu novo romance. A semelhança é apenas de superfície. Parecem-se as receitas, mas diferem em natureza e qualidade os ingredientes que entraram na feitura do bolo. Deve-se ainda levar em conta que muitos dos críticos que insistiram na parecença entre os dois livros leram Point counterpoint através do texto português, no qual é explicável que se note um pouco da presença do tradutor.
Lembro-me de ter confiado um tanto timidamente a Dyonelio Machado o plano de Caminhos Cruzados no mesmo dia em que ele me narra a história de sua admirável novela Os Ratos. E foi encorajado pelo singular criador de Naziazeno que me atirei com entusiasmo ao segundo romance, terminando-o ao cabo de três ou quatro meses, nos quais como de costume só aproveitei os fins de semana.
Lá estava ainda o estilo staccato, como descargas de metralhadora. (Dezoito anos depois, ao apreciar a tradução inglesa de Caminhos Cruzados, o crítico William Dubois escreveria no suplemento literário de The New York Times: "É impossível descrever a qualidade elétrica do estilo deste escritor".)
Faz-se visível desde a primeira página do romance a pronunciada tendência de seu autor para a caricatura. O livro foge às descrições bizantinas, às sutilezas psicológicas, às cenas elaboradas. Suas histórias são objetivas e de pura ação (embora quase nunca de ações puras) -, uma sucessão enfim de quadros movimentados que resultam numa espécie de corte transversal duma sociedade.
Caminhos Cruzados é evidentemente um livro de protesto que marca a inconformidade do romancista ante as desigualdades, injustiças e absurdos da sociedade burguesa. Não é, pois, de admirar que seu autor tenha sido desde logo apontado por críticos e leitores primários como um agente da propaganda comunista.
O sucesso de crítica da presente obra, entretanto, foi bastante animador, embora o de venda no primeiro ano fosse apenas medíocre. O romance foi discutido com certo calor e a Fundação Graça Aranha conferiu-lhe em 1935 seu prêmio literário anual. O poeta que escrevera Clarissa estava um tanto perplexo em face do caricaturista que traçara a carvão e sarcasmo retratos como os de Dodó, Leitão Leiria e Armênio Albuquerque.
Entre a inocência menineira de Clarissa e a malícia de Chinita havia um abismo. Sim, João Benévolo tinha um pouco de Amaro, e Fernanda poderia tornar-se amiga e confidente de Clarissa, caso viessem um dia a encontrar-se.
Clarissa e Caminhos Cruzados não pareciam livros escritos pelo mesmo autor. Se no primeiro havia um exagero de luz, talvez houvesse no segundo um excesso de sombra. Para evitar as armadilhas da poesia e da ternura, o autor havia caído nos alçapões do cinismo e da impiedade.
Posso, entretanto, assegurar que escrevi ambos os livros com o mesmo gosto e a mesma espontaneidade. Os originais de Caminhos Cruzados - folhas de papel almaço cortadas ao meio - foram escritos a máquina, havendo entre suas linhas três espaços nos quais mais tarde fiz a mão correções e acréscimos. E como foram poucas essas emendas! Comparem-se os originais de meus livros com os dos três ou quatro últimos e se verá como o escritor na casa dos quarenta tem muito mais dúvidas, hesitações e exigências do que o da casa dos vinte.
Caminhos Cruzados saiu cheio de cincadas que não foram corrigidas nas suas muitas edições sucessivas, mas que tive o cuidado de eliminar (assim o creio) ao preparar os originais para esta edição especial.
Havia, por exemplo, no quarto de Salu, uma mancha retangular de sol que, à medida que a manhã envelhecia, se ia tornando mais longa, até cobrir o rosto da personagem adormecida. Ora, tal coisa era impossível, a não ser que o autor tivesse subvertido o sistema solar. Para que a língua de sol se espichasse em vez de diminuir, era preciso que o sol estivesse descendo e não subindo!
Que dizer das personagens?
Creio que têm a força e ao mesmo tempo a fraqueza da caricatura. É impossível - reconheço hoje - que dona Dodó não tivesse um lado simpático, ou antes, que sua psicologia fosse tão simplesmente linear como o livro dá a entender. O mesmo se poderia dizer de quase todas as outras figuras.
Mas, pensando melhor, não poderemos também alegar em defesa do romancista que a caricatura é uma tendência reconhecida e aceita da arte moderna, principalmente da pintura? Não haverá muito de deformação na obra de muitos pintores como Portinari, Di Cavalcanti e Segall - todos eles inconformados com a sociedade em que vivem?
Não creio que ninguém possa ser tão vago e fora deste mundo como Noel ou João Benévolo. Relendo Caminhos Cruzados, pergunto a mim mesmo se poderia tê-los feito de outro modo e se um maior cuidado de composição (como eu tinha pressa de me livrar de minhas histórias e personagens naqueles tempos!) não haverá deitado a perder o efeito geral do livro, sabido como é que nem sempre o quadro mais realizado é o que apresenta o luxo meticuloso de detalhes. De resto, não devemos esquecer que Caminhos Cruzados é uma espécie de mural pintado com pistola automática e não uma tela trabalhada com pincéis de miniaturista.
(O leitor deve ter notado a freqüência com que nestes prefácios invoco a pintura como ponto de referência. É que no fundo eu talvez seja um pintor frustrado que, não tendo conseguido aprender o ofício, hoje se contenta com pintar com palavras.)
Uma releitura de Caminhos Cruzados me convenceu de que nele tornei a cometei pecados de simplificação, dos quais, entretanto, não me arrependo, convencido como estou de que, apesar de todos os seus defeitos, o livro atingiu o objetivo visado pelo autor.
Jamais esquecerei a conversação que mantive em 1944 em Berkeley com Miss Monteith, professora do Departamento de Francês da grande universidade que tem sua sede naquela repousada cidade da Califórnia. Havia ela lido a tradução norte-americana de Caminhos Cruzados e me censurava por eu ter criado personagens sem nenhuma profundidade psicológica. Achava o livro cruel, frio e elementar. "Um romancista" - disse-me - "não deve apenas fotografar a vida, mas iluminá-la."
Mais tarde vim a saber que, conversando a meu respeito com uma terceira pessoa, Miss Monteith declarara:
"Mr. Verissimo tem uma alma, mas não sabe".
Talvez seja exatamente isso que acontece com a maioria das personagens de Caminhos Cruzados. E da vida real...
Erico Verissimo, 1964